A volta dos textos do Otakismo ao Chuva de Nanquim.
“Ao discutir arte contemporânea do Japão, há uma necessidade crônica de ir além do kawaii, anime, mangá, otaku e essas coisas. De muitas maneiras, o que o Ocidente vê como o ‘Japão de hoje’ é mais precisamente um reflexo dos dias de glória da geração otaku nos anos 90, ou seja, uma visão do Japão 10 anos desatualizada.” (Adrian Favell, em 2009!)
Quando somos levados a pensar em arte japonesa, uma sorte de figuras costuma aparecer em nossas mentes de imediato. Imagens chapadas de pontes, flores ou do Monte Fuji, construídas com pinceladas precisas e suaves. Alguns podem buscar a memória do som do shamisen acompanhando a dança das gueixas. Entre outros exemplos, quando se fala de arte japonesa, as imagens que povoam o imaginário coletivo, de modo geral, são aquelas do Período Edo (1603-1868), típicas do Japão recém-descoberto pelo Ocidente no século XIX ou baseadas no estilo artístico daquela época. Se nos desafiarmos a pensar o que é a arte japonesa de hoje em dia, é muito provável que nossa primeira lembrança seja dos produtos de consumo da indústria pop japonesa, advinda dos mangás, animes e jogos eletrônicos. Temos dificuldade em distinguir o que é arte ou entretenimento nas produções japonesas que vieram após a pacificação do país com o término da Segunda Guerra Mundial.
Existe uma explicação para o fato de que as imagens do Japão pop tenham sido internacionalmente generalizadas como a representação do Japão do nosso tempo, ou melhor, nomeadas como embaixadoras do país mundo afora. Essa justificativa não passa pela hipótese da inexistência de artistas de qualidade (entendendo ‘artista’ na concepção ocidental do termo). O pós-guerra japonês apresentou artistas de renome como Yayoi Kusama, Hiroshi Sugimoto, Yasumasa Morimura, Yoko Ono, Tatsuyo Miyajima e Tadashi Kawamata. Trouxe também contribuições importantes em movimentos modernos como a Anti-art e o Mono-ha. Atualmente continua preparando jovens com grande potencial, caso da Tabaimo, Miwa Yanagi, Motohiko Odani e Kohei Nawa. Apesar disso, apenas três artistas contemporâneos do Japão são mencionados como nomes que guiarão o mundo da arte no século XXI junto com os estrangeiros, todos eles relacionados de alguma maneira com as fantasias pop do movimento Superflat: Takashi Murakami, Yoshitomo Nara e Mariko Mori. Murakami, particularmente, foi considerado pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2008.
Que caminho percorreu a arte japonesa no final do séc. XX para que ela se confundisse com o imaginário descartável da cultura pop comercial? Para esclarecer essa questão, será necessário primeiro mapear o contexto histórico, de modo que a produção artística nipônica seja compreendida à luz da realidade objetiva do país que lhe deu origem. Com tal missão, este texto passará brevemente pelo contexto global do nosso tempo, pela história do pós-guerra asiático (pela relação do povo com a sua memória histórica) e pelos esforços do governo japonês em internacionalizar sua cultura nacional. Por fim, investigar o que a arte contemporânea do Japão produziu nas últimas duas décadas, seus principais artistas e movimentos (Superflat, Zero Zero Generation, Chim↑Pom e etc.), suas implicações e provocações direcionadas ao povo japonês e ao mundo/mercado da arte, bem como descobrir as vozes que não compactuam com esse universo pop, mas foram abafadas pela onipotência do discurso Superflat dentro e fora do Japão – enquanto tentam demonstrar que o país não é apenas composto de Hello Kitty’s. Nas considerações finais, o texto passará pelo que podemos esperar da produção artística japonesa no futuro, tendo em vista que ela foi profundamente modificada em propósito pelos desastres naturais e atômico de Fukushima, além de encarar a desleal concorrência por atenção e financiamento com a emergente produção artística da China (China Mania). Espero poder levantar questões relevantes durante a leitura deste artigo!
Antes de falar de arte japonesa, eu preciso falar um pouco do ambiente japonês. Ah, o texto é grande, favorite e leia aos poucos se julgar mais confortável. As palavras sublinhadas são links clicáveis que ilustrarão o dito.
~COOL JAPAN~
“‘Cool Japan’ celebrou o Japão quando não havia muito o que celebrar. Ao contrário. Políticos estagnados, negócios internacionais vacilantes, má relação com o resto da Ásia, uma crise demográfica iminente, um monte de jovens trancados em seus quartos com problemas psicológicos. Apesar disso, depois do 11 de Setembro nos EUA, houve uma demanda por imagens de brilhantes torres prateadas com flores e dinossauros felizes [Roppongi Hills], e não de uma colapsando com fumaça e chamas ao redor [World Trade Center].” (Adrian Favell)
Nenhum país no mundo apresentou durante o século passado crescimento econômico e progresso material de forma tão vertiginosa quanto o Japão. O país emergiu da 2ª Guerra fisicamente em frangalhos, militarmente ocupado e moralmente arruinado. Quatro décadas depois as corporações japonesas solapavam colossos industriais dos Estados Unidos e Europa enquanto economistas apostavam na inevitável superação da economia americana pela nipônica. Isso não aconteceu, ao contrário, desde o início dos anos 90, quando estourou a bolha imobiliária do país, o Japão se encontra estagnado, sofrendo há mais de 15 anos com uma economia deflacionária que perde dia após dia a relevância e a competitividade que possuía nas décadas passadas.
Como afirmou o próprio governo japonês em um relatório oficial: “Já não podemos mais contar com os modelos convencionais da indústria e economia japonesa, que consistem em produção em massa, consumo em massa e competição por custo. O Japão não irá sobreviver sem a criação de novas fontes de receita”. Com a falência do modelo econômico responsável pelo ‘Milagre Japonês’, o governo buscou novas formas de rentabilizar sua produção, e enxergou em sua cultura nacional, principalmente a cultura pop, uma alternativa de valor.
“De alguma maneira, nesse universo dos animes, mangás e jogos, criou-se uma aproximação com algumas questões que estão em jogo em diversas situações e se referem à perda da humanidade, da identidade, dos gêneros, ou da própria vida. É o mundo pós-Akira que começa quando quase tudo já acabou, como propôs Katsuhiro Otomo no mangá de 1984, que originou o filme homônimo.” Christine Greiner
A nova política comercial recebeu o nome oficial ‘Cool Japan’, possivelmente inspirado no esforço inglês de fazer o mesmo com o Britpop, denominado ‘Cool Britannia’. O Ministério da Economia, Comércio e Indústria espera quadruplicar o faturamento com a exportação de elementos culturais até 2020, saltando dos atuais US$50 bilhões para desejáveis US$200 bilhões, tendo como foco estratégico a alimentação, moda, anime, mangá, artesanato, utensílios do cotidiano e turismo; Além de usar, é claro, sua desejada imagem pop como atributo para agregar valor em sua produção industrial (marketing). Com a mira apontada, sobretudo para a classe média ascendente da Ásia, como as de Singapura e Indonésia, o Japão tem relatórios detalhados com os passos necessários para se tornar cool em cada país. No caso de Singapura, por exemplo, o governo é claro:
“A crescente popularidade do conteúdo da Coreia do Sul está causando um declínio na imagem do Japão ente os jovens que determinam o que é popular em Singapura e em outras nações asiáticas. Para reverter esta tendência, este projeto vai trabalhar como um consórcio composto principalmente por empresas japonesas que estão alarmadas com a situação presente, para garantir oportunidades de exposição regular de conteúdo japonês e para que os membros do consórcio adquiram ganhos no exterior” (METI)
Adrian Favell classifica o Cool Japan como um Neo-Japonisme, um renascimento do encanto ocidental pelo Japão (em referência ao Japonisme do século XIX, momento no qual inúmeros artistas impressionistas europeus se inspiraram na arte clássica japonesa). Não foi por acaso que o Japão se tornou pop no mundo inteiro a partir dos anos 90 (e o boom começou no Brasil em 1994 com Cavaleiros do Zodíaco). O estereótipo do salaryman japonês, que produzia as maravilhas tecnológicas modernas como o Walkman, foi substituído – de modo consciente e arquitetado – pelo estereótipo da cultura urbana e otaku japonesa, do divertimento jovem, hedonista e descompromissado.
A influência da cultura japonesa deveria substituir a extensão internacional da manufatura e das finanças nipônicas. Cool Japan, nas mãos dos políticos conservadores do país, se tornou ferramenta de política externa. O Ministério de Relações Exteriores do Japão nomeou como ‘embaixadoras do kawaii’ três meninas vestidas com a moda juvenil de Harajuku. Garotos propaganda da cultura japonesa foram internacionalmente divulgados, como os cineastas Takeshi ‘beat’ Kitano e Takashi Miike, o fashion designer Issey Miyake, o romancista Haruki Murakami, o chefe de cozinha Nobu Matsuhisa, o artista plástico Takashi Murakami (de quem falarei muito), entre outros.
Órgãos como o Japanese Foreign Ministry, a Japan Foundation e a Agency for Cultural Affairs (Bunka-cho) gastam milhões de ienes todos os anos para moldar a imagem que o Japão presente terá no mundo. A arte contemporânea virou uma das principais frentes de batalha por dialogar com uma elite rica e cosmopolita.
“O que eles falavam a respeito, enquanto a economia permanecia estagnada e a influência do Japão no mundo diminuía, era cultura: como ressignificar e remontar a imagem internacional do Japão. E assim eles colocaram mangás e animes em folhetos oficiais. Videogames e personagens de brinquedo substituíram carros e computadores como os símbolos principais da indústria exportadora japonesa” (Adrian favell)
É evidente, apenas o lobby político de Tóquio não seria capaz de criar uma mentalidade voltada para a arte, a realidade mundana do Japão pós-industrial foi um excelente combustível para movimentar esta máquina. A economia degringolou, o Imperador Hiroito morreu (em 1989) e o período Showa terminou levando consigo os tempos áureos do país. O capital internacional migrou para outras regiões da Ásia, como a China e a Coreia do Sul, e o sonho japonês terminou. Sem esperanças de encontrar ou construir um futuro melhor para si e para o Japão, muitos jovens perderam a referência e passaram a apresentar sérios problemas de socialização. A sociologia japonesa a partir dos anos 90 criou ou intensificou o uso de uma infinidade de termos para tipificá-los, como hikikomori (isolamento doméstico extremo), parasaito singuru (adultos solteiros que vivem eternamente na casa dos pais), make inu (mulheres que não se casam), enjo kosai (meninas quase sempre menores de idade que participam de encontros compensados), homens herbívoros (que voluntariamente deixam de competir por mulheres e empregos), otaku e etc.
Outros jovens, no entanto, reagiram de modo diferente ao Japão que gangrenou. Com sonhos esfacelados, eles debandaram do sistema corporativo japonês para viver como ‘espíritos livres’, afastados da lógica comercial vigente. Eles aceitam viver de freelas ou em empregos temporários que apenas garantem subsistência sem luxos. O entusiasmo dessas pessoas, que em tempos melhores era aproveitado pela indústria do país, hoje é quase que completamente desaguada em expressões culturais. É a geração de Hiroshi Fujiwara, Cornelius e Jun Takahashi. Tendo que viver num mundo de fantasias, fartamente alimentados por mangás e animes, estes jovens dão corpo aos seus pensamentos na forma de arte, geralmente ingênua e quase sempre medíocre, enquanto estão trancados em seus quartos.
Favell defende que o Japão atual vive um superávit criativo, mas ele não está mais sendo empregado pela indústria nacional para se reinventar e recuperar a competitividade perdida nos mercados internacionais, está sendo, na verdade, desperdiçado em arte adolescente. Do mesmo modo que, como orientam Hiroki Azuma e Etienne Barral, o rígido ensino matemático das escolas japonesas não está sendo integralmente aproveitado em complexos sistemas estatísticos que aperfeiçoam a administração corporativa. Muitos jovens estão usando estas habilidades adquiridas para registrar e categorizar dados inúteis sobre suas fixações nerd, atividade que não o leva, nem leva seu país, a lugar algum (tabulação é uma das características que melhor caracteriza um otaku hardcore – não a toa o livro do Azuma chama-se ‘Otaku: Japan’s database animals’).
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Vamos lá, passagem do séc. XX ao XXI, esforço governamental para a popularização do Cool Japan e uma geração de jovens imaturos criadores. Podemos, finalmente, entrar onde interessa. O Manifesto Superflat de Takashi Murakami.
SUPERFLAT
“O que aparentemente era entendido apenas como entretenimento ou depravação acabou por revelar espaço importante para reflexão e manifestação de ideias. Quando o artista Takashi Murakami lançou seu manifesto Superflat, em 2001, o mundo passou a compreender as experiências otaku ou o mundo dos nerds sob um viés politizado. A exposição de suas obras em Nova York (Little Boy: the arts of Japan exploding subculture, 2005) retomou a Segunda Guerra e as bombas atômicas, identificando os japoneses, desde então, como portadores de ‘membros fantasmas’ que não seriam propriamente braços e pernas amputados, mas princípios dilacerados. Little Boy era codinome da bomba atômica que explodiu em Hiroshima (…). Desde então a questão mais complicada passou a ser como olhar para frente sem tentar erradicar a história ou como conviver com a noção de sujeito individual, importada do Ocidente, sem perder o sentido da coletividade” Christine Greiner
Superflat [supercompactação/supernivelamento/superachatamento] não é apenas um estilo artístico do criador Murakami, ou o nome de uma exposição em particular, mais do que isso (já que abarca também esses fatores), é uma teorização sobre a produção e o consumo de arte no mundo globalizado que surgiu com a queda da URSS. Movimento estético pós-moderno nascido nas artes plásticas japonesas, parte do pressuposto de que o mundo está bidimensional.
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O Superflat, em termos estéticos, é uma criação que faz ponte entre a arte clássica japonesa (já que perspectiva e outras técnicas desenvolvidas na Europa medieval ainda não eram conhecidas) e a cultura pop do Japão. Dito de outra forma, ela faz construções com o imaginário otaku (animes, mangás e games), utilizando algumas técnicas e estéticas que consagraram a arte japonesa pré-ocidentalização (não exclusivamente, já que os mangás foram imensamente influenciados pelas técnicas ocidentais). Suas obras são propositalmente artificiais, sem profundidade aparente. Parecem ilustrações publicitárias criadas por designers gráficos. Atraente e de fácil consumo, a arte Superflat, nas palavras da curadora Catherine Taft, tem muita força por dar a impressão de que oculta algo do espectador. Por trás das suas imagens pop e descartáveis, às vezes grosseiras e de mau gosto, esconde-se algo perturbador e provocativo. Porque realmente tem. Como defendeu o curador na exposição de Los Angeles, Michael Darling, Murakami ficou famoso por colocar sentido em produtos comerciais superficiais e vender isso aos adultos por milhões de dólares.
“O mundo do futuro pode ser como o Japão é hoje – Superflat. Sociedade, costumes, arte, cultura: todos estão extremamente bidimensionais” (T. Murakami)
O Superflat, em termos conceituais, turvou as fronteiras entre a ‘alta arte’ e a cultura popular, entre local e global, Japão e EUA, modernismo e pós-modernismo, real e virtual, capitalismo e arte, leste e oeste, analógico e digital. Todas estas coisas estariam niveladas, supercompactadas e indistinguíveis no mundo contemporâneo, como um hambúrguer cultural. Tudo no mundo está processado, prontamente disponível para ser digerido com igual facilidade, mas também está achatado e sem profundidade. Carregam consigo apenas odores daquilo que um dia lhes caracterizavam. Assim é a provocativa arte de Murakami: flat, como a tela do computador que produz arte no mundo de hoje. Flat, como ficaram as cidades de Hiroshima e Nagasaki após os ataques nucleares. Isso fica muito claro quando ele coloca suas esculturas plásticas multicoloridas em exposição no opulento Palácio de Versailles na França, símbolo da realeza e da alta cultura europeia. Murakami é um teórico da arte, publicou livros como The Art Entrepreneurship Theory e Art Theory Battle, e tem muito a dizer sobre o atual estado da sociedade japonesa.
“A superfície lisa do Superflat é um terreno de contestação, marcando tanto a ausência de divisões hierárquicas entre a arte e cultura tradicional quanto a presença de múltiplas estruturas que demarcam os diversos contextos culturais, políticos, sociais e históricos aos quais o Superflat se insere à medida que circula globalmente” (K. Sharp)
Mais do que denunciar o nivelamento do Japão, e de certa forma de todo o planeta, o manifesto Superflat tem uma proposta destrutiva e reformadora que direciona seus canhões ao mundo da arte japonês (e por isso mesmo jamais concordaria com críticos de arte como Jerry Saltz que afirmam Murakami como um simples vendedor de sensações visuais). Crítico ferrenho da arte moderna japonesa (kindai bijutsu), Murakami delata seus conterrâneos por se apropriarem – de maneira malfeita e incompleta, ainda por cima – dos conceitos e instituições da arte ocidental no período Meiji (1868-1912). Técnicas, materiais, a noção de museu, escolas de arte e o próprio conceito de arte do Oeste (todos diferentes das japonesas) foram importados e assimilados sem maiores critérios e considerações pela tradição artística nacional. Murakami veria no mangá, no anime, na moda e no design gráfico do Japão atual a beleza e a originalidade artística do passado, sumariamente descartadas pela arte moderna do país. A crítica não é ao padrão da arte ocidental em si, mas à absorção acrítica dela por parte dos japoneses.
Murakami e seu manifesto são híbridos. A pop-art americana é sua grande influência, enquanto Andy Warhol e Jeff Koons são referências declaradas do japonês. Ao mesmo tempo, ele se formou na Geidai e foi o primeiro Ph. D em nihonga na história do Japão (nihonga é a produção de arte que segue as convenções estéticas e materiais japonesas pré-ocidentalização). Com proposta global, fez grandes esforços para internacionalizar sua arte e os produtos manufaturados produzidos em seus estúdios, que levam o carimbo da sua valiosa marca. E conseguiu. Murakami levou sua arte para Los Angeles, Nova Iorque, Paris, Bilbao, Londres, Veneza e Frankfurt. Dono de forte veia comercial, 70% de suas obras foram comercializadas no Ocidente, e não no Japão. Ele globalizou sua arte não apenas porque gosta de ganhar dinheiro com isso, mas porque isso também faz parte do seu manifesto.
![Parceria comercial com a marca Louis Vuitton]()
“Quando os produtos e costumes pop saíram do Japão, tornaram-se independentes do contexto em que foram concebidos, e, na maioria das vezes, passaram a ser embalados na estética da mera diversão. Murakami fará uma crítica à sociedade japonesa consumista, e ao mesmo tempo mostrará como uma nova geração de artistas poderia valer-se do próprio mercado e dos meandros da política cultural para construir um novo pensamento, aliando arte e consumo” (Christine Greiner)
Ao crescer junto a outros artistas que foram identificados como representantes do neo-pop, Murakami, segundo leitura de Noi Sawagiri, parodiou o infantilismo da cultura de consumo japonesa do pós-guerra. Eles remixavam e faziam sampling (atitude 100% pós-moderna, não?) usando as referências da cultura junk com a qual os japoneses preencheram suas vidas pacíficas e dependentes dos EUA. Os americanos criaram o novo Japão com a cultura pop fazendo o papel do cimento que pavimentava o futuro e amaciava os nativos (outrora ensinados pela lógica militarista do Império Japonês). Inundaram a vida dos japoneses com seus enlatados culturais. Os japoneses gostaram. Não só gostaram como aprenderam a fazer o mesmo. Com o Superflat sendo apresentado no exterior, Murakami devolveu a cria aos criadores. Ele pegou todo o entulho cultural que despejaram no Japão, reprocessou, prensou tudo até deixá-lo flat como fazem os caminhões de lixo, e enfiou num container destinado aos Estados Unidos. Sua exposição encheu Nova Iorque com imagens de menininhas pré-púberes perigosamente seminuas, sugestivos cogumelos (atômicos), flores sorridentes e uma gigantesca estátua de um jovem ejaculando. Foi a vez dos americanos. Eles adoraram. Gastaram fortunas comprando as obras e os produtos confeccionados nos estúdios do Murakami. E a cobra acabou mordendo o próprio rabo.
![Little Boy]()
“Não seria exagero dizer que a constituição feita pelos americanos [imposta ao Japão em 1945] impediu a nação de tomar uma postura agressiva e forçou o povo japonês no sentido de uma mentalidade de dependência sob a proteção militar dos Estados Unidos. No entanto, por mais justa ou injusta que tenha sido a posição americana na época, ela lançou o Japão ao papel de uma ‘criança’ obrigada a seguir a orientação ‘adulta’ dos Estados Unidos” (T. Murakami)
Provocações a parte, a cama já estava montada. Mais do que depositar no Japão sua cultura, o governo americano foi um pai muito rígido para os japoneses. Na visão de Murakami, infantilizou o país ao impedi-lo de desenvolver suas Forças Armadas numa região abarrotada de potências bélicas (os nucleares China, Rússia, Índia, Paquistão e agora Coreia do Norte, além do poderoso exército sul-coreano), sendo que o país ainda tem disputas territoriais em andamento, como as ilhas Curilas com a Rússia e as ilhas Senkaku com a China. Quando uma disputa retórica ameaça ferver o Pacífico, principalmente agora que a Ásia está se tornando o centro geopolítico do mundo, o Japão precisa correr para o colo dos americanos.
![Shinzo Abe a o polêmico 731]()
Ben Hamamoto enxerga essa mesma infantilização, mas com outras lentes. Os americanos poderiam transformar o arquipélago num gigantesco pasto após a Rendição Incondicional se assim desejassem (e muitos queriam), mas por questões estratégicas colocaram o Japão na direção do progresso material. Mais do que isso, não levaram o Imperador ao julgamento das cortes internacionais para ser avaliado por crimes de guerra pelos quais foi responsável, permitindo assim que o Japão silenciasse sobre seus abusos militares – privilégio não concedido aos demais países derrotados, sobretudo Alemanha e Itália.
Esvaziaram a memória histórica do povo japonês. Não pense no passado, aproveite o seu presente que é próspero, ensinaram às crianças do Japão. Esse mindset, o excesso de paz física do pós-guerra e a dependência geral em relação aos EUA teriam ajudado a criar uma mentalidade mimada, dependente, frágil e pueril no Japão – amplamente disseminada pela cultura pop e agora ironizada pelo Superflat. Os artistas ligados ao movimento não vivenciaram a guerra ou seus momentos de reconstrução, mas são testemunhas vivas de um processo radical de ocidentalização e a conseqüente dificuldade de fixar uma identidade numa atmosfera tão fluida.
“Renderizar um país através de uma figura bidimensional fofinha também proporciona uma forma de mascarar o cadáver ensangüentado do cachorro que é o Japão Imperialista [referência ao personagem Maromi do anime Paranoia Agent]. Experiências com humanos (incluindo vivissecções sem anestesias), rapto de mulheres para servirem de escravas sexuais, e o infame Massacre de Nanquim; todas essas coisas escondidas debaixo do olhar tolo da Hello Kitty. O Japão foi também um participante extra-oficial na Guerra do Vietnã, Guerra da Coreia e nas Guerras do Iraque. Ainda sim o Japão é visto como inocente e pacífico.” (Ben Hamamoto)
![Propaganda do Império Japonês]()
Essa ideia é poderosa. A arte criada nos tempos do Cool Japan frequentemente remete à cultura das garotas. Seja ao dar espaço para a criação delas próprias, seja ao pintar a fantasia do que é a cultura infanto-feminina que brotava das cabeças dos homens otaku envolvidos com o Superflat (obcecados pela juventude e frescor delas). Cores chapadas, meninas virginais e vulneráveis, mas ao mesmo tempo um pouco ressentidas e violentas – um quadro freqüente na arte contemporânea japonesa. Murakami reuniu algumas dessas meninas (Aya Takano, Chiho Aoshima e Mahomi Kunikata) sob a sua bandeira Superflat na exposição Tokyo Girls Bravo, que foi levada da capital japonesa à costa oeste americana. No catálogo, artes pueris, fotos das artistas remetendo à mocidade (ainda que algumas delas já beirassem os 30 anos), mas com descrições textuais duras: relatos de angústias existenciais, perversões sexuais e violência. Kunikata levou isso além e foi mais direta na exploração destes elementos. Essas meninas eram, sob qualquer perspectiva crítica, amadoras. Murakami as empacotou como o melhor da arte contemporânea japonesa. O mundo comprou a ideia.
![Mahomi Kunikata]()
Em sua escola de arte (GEISAI), Murakami trouxe para baixo de sua tutela esses jovens insatisfeitos com o intuito de destruir o sistema de arte vigente no Japão. Em seus estúdios KAIKAI KIKI, em Tóquio e no Brooklyn (EUA), a produção de arte e dos artigos colecionáveis com a marca MURAKAMI, como chaveiros e camisetas, funciona em regime fordista. Seu papel na história da arte mundial ficará marcado pela forma como ele trabalhou o branding (a gestão da marca pessoal) da sua produção criativa, unindo conceito artístico e sanha comercial. Foi um dos precursores, no mundo, da arte na era da internet 2.0 (banda larga, 3G, blogging, wiki, redes sociais, fóruns de discussão, scanner pessoal e proliferação dos softwares de edição de imagens). Sua arte funciona bem, talvez até melhor, fora das galerias. Pode ser consumida e distribuída na tela do PC. Vendida em chaveiros, cadernos e bolsas – mesmo as Louis Vuitton (afinal, o mundo está flat). A reprodutibilidade técnica elevada à potência máxima.
Localmente, será lembrado pela sua tentativa de desconstruir o sistema de produção e comercialização de arte no Japão. Lá, a arte clássica ainda é muito forte, conta com mão-de-obra qualificada, amplo financiamento, escolas conceituadas e orientação teórica voltada ao domínio absoluto da técnica. Murakami, um conceitualista, dá espaço e notoriedade para a inovação – mesmo que nas mãos de amadores. Será reconhecido também por tecer uma crítica estética ao contexto social que gerou essa superficialidade no Japão, e ao mesmo tempo como um oportunista que se aproveita dessa falta de fronteiras. Alguns críticos mais temerosos se questionam se Murakami está nos guiando ao futuro da arte ou terminando de destruí-la.
Em parte porque Murakami é sim um conceitualista (que pode talvez estar guiando muita gente ao caminho errado), mas muitos dos artistas contidos no guarda-chuva do seu Superflat não são! Na verdade alguns são otaku que vivem de reproduzir seus fetiches estéticos grotescos, e a ideia do Takashi pode acabar se diluindo lado a lado com outras obras que estão lá contribuindo apenas com o choque pelo choque, não com o choque via distorção do real para escancarar o ridículo de algo em termos críticos. Exemplifico:
![My Lonesome Cowboy]()
“Maio de 2008 foi certamente um momento histórico para a arte japonesa. Milhares de anos de história da arte nipônica, com a sua sensibilidade estética refinada e requintada; bem como o desenvolvimento urbano dramático do pós-guerra e mudanças culturais sem paralelos em qualquer lugar durante o século XX, de alguma forma, se concentraram nisto: uma estatueta plástica de oito pés de altura se masturbando na frente de uma multidão de magnatas da classe executiva e estrelas das passarelas, a aplaudindo, no coração de Nova Iorque” (Adrian Favell)
My Lonesome Cowboy – vendido para um colecionador europeu por US$ 15 milhões (não postarei aqui sem censura) – parodia, na leitura de Sharp, a noção de autonomia e da expressão subjetiva da Modernidade Ocidental, claramente expressa em artistas como Jackson Pollock. A estátua era apresentada a frente de uma tela chamada Milk, onde o estilo splash de Pollock é emulado (Expressionismo Abstrato), mas os traços caóticos são feitos referenciando o sêmen da estátua. A obra também faz escárnio com os otaku (acusados de praticar o ‘ato’ com muita freqüência), faz referências ao ukiyo-e de Katsushika Hokusai e aos animes (dinamismo estático), além de brincar com os clichês do pop japonês (cabelo estilo Goku, o jato simulando a energia emanada por um personagem do gênero shonen, a confiança do protagonista etc).
My Lonesome Cowboy é considerado um caso raramente feliz de casamento entre conceito e forma, apesar do aspecto burlesco de mau gosto aparente. Já outros artistas Superflat como ‘Mr.’ parecem mais dispostos a apenas explorar suas fascinações, produzindo sempre sob o perigoso véu do ‘Lolita Complex’. Um exemplo é a ilustração 15 Minutes from Shiki Station (a censura é minha, vocês sabem o que ela esconde):
![15 minutes from Shiki Station]()
O discurso ou posicionamento Superflat, diretamente influenciado pelos mangás e animes, foi posteriormente absorvido por eles em títulos como Paranoia Agent [de Satoshi Kon] e Puni Puni Poemi [de Shinichi Watanabe]. Sayonara Zetsubou Sensei [Adeus, professor desesperado] de Koji Kumeta, no entanto, talvez seja a expressão máxima do conceito aplicado ao pop comercial. No título, um professor extremamente pessimista, que vê em tudo um motivo para o suicídio, dá aulas em uma classe repleta de personagens derivativos dos clichês do pop japonês: tem a hikikomori, a certinha, a possuidora de um otimismo cego, a menina machucada com tapa-olho (Rei Ayanami quem?), entre outros. Ainda não li o mangá, portanto tomarei o anime como base de análise.
No fragmento de um episódio chamado ‘A estudante ilegal’, Mari-san, uma imigrante ilegal vinda de algum canto misterioso da Ásia, se encanta com o maravilhoso Japão, onde as pessoas são gentis, generosas e tratam bem as crianças. SZS está, na verdade, demolindo o Cool Japan e nos lembrando que o Neo-Japonisme é propaganda. Enquanto ela elogia os japoneses por tratarem bem as crianças, as imagens nos mostram um pedófilo abordando uma menina, num país cujo padrão de beleza padrão é o infantilismo (NÃO ESTOU DIZENDO QUE OS JAPONESES SÃO PEDÓFILOS). Quando ela sai de cena dizendo “É um bom país, eu gosto dele!”, rodeada pelo belíssimo despetalar das cerejeiras, paisagem tão usada nas propagandas de turismo, ao fundo podemos ver que há um casal de nativos se suicidando por enforcamento em um dos galhos destas árvores (num país com media de 30 mil suicídios por ano). Maria-san, encantada demais, não percebeu que por trás de tanta beleza há um país como outro qualquer, com inúmeras qualidades, mas também com sérios defeitos. Você pode ver a cena legendada em inglês clicando aqui.
![Sayonara Zetsubou Sensei]()
YOSHITOMO NARA
Se há no Japão algum artista que compartilha com Murakami o mesmo faro comercial, ele se chama Yoshitomo Nara. Com uma distinção. Diferente de Murakami, que alcança cifras inéditas para um japonês, mas cujo faturamento flutua muito de acordo com as especulações no mundo da arte e as crises econômicas, Nara obteve um sólido reconhecimento financeiro com a chegada de sua maturidade artística. Suas produções estão ficando progressivamente mais caras, de forma consistente, sem flutuações. Antenado, produz o que sabe vender, sobretudo nos mercados asiáticos.
![Yoshitomo Nara2]()
Iniciou sua carreira artística na Alemanha, mas alcançou sucesso nos EUA, Japão e Coreia do Sul (onde é um fenômeno e constante vítima de pirataria). Ganhou notoriedade primeiro com um livro ilustrado, In the Deepest Forest, mas se tornou um dos grandes com suas pinturas de crianças (olha elas aqui de novo). Geralmente pequenas, indefesas, por vezes com aspecto tristonho. Em alguns quadros, elas estão armadas ou com feições de raiva e medo. Sua obra costuma ser interpretada como o registro do sentimento de desesperança e frustração que os jovens japoneses degustam, isolados, numa sociedade hiper-conectada pela tecnologia.
![Yoshitomo Nara]()
Ele desconversa. Diz que as crianças são apenas auto-retratos (de um homem que já passou dos 50 anos). Brinca que as pessoas entendem mais da arte dele do que ele próprio. Nisso difere muito de Murakami, não é um conceitualista, não pretende reformar nada, apenas quer viver de sua arte. De todo modo, a estética rígida de uma eterna adolescência, que ele continua pintando por incontáveis anos, foi um prato cheio para os públicos sul-coreano e japonês. Geralmente associado ao movimento Superflat, Nara foi também um dos principais nomes do Micropop, do qual se desvinculou posteriormente.
MARIKO MORI
Mariko Mori seguiu um caminho muito diferente daquele galgado por Murakami e Nara, aliás, por quase todos os aspirantes ao mundo da arte, com suas intrínsecas dificuldades financeiras. Ela pertence a uma das famílias mais ricas do Japão. Estudou moda em Tóquio (Bunka Fashion College de Shinjuku) e arte em Londres e Nova Iorque. Sua posição social lhe garantiu contatos privilegiados e condições materiais raras para um iniciante.
![Mariko Mori1]()
Obteve sucesso ainda nos anos 90 com seus trabalhos fotográficos, nos quais atuou como modelo. Em Love Hotel (1994, quando o Japão começava a discutir sobre o enjo kosai) ela se metamorfoseou em uma ciborgue… Vestida de colegial numa cama de motel. No mesmo ano se fotografou como uma idol em Birth of a Star. Na época sua obra discutia o papel da mulher na modernidade das metrópoles japonesas.
“Sua arte é uma síntese de opostos: realidade e fantasia, seriedade e humor, homem e máquina, tecnologia e natureza, ciência e religião. Assim como o Xintoísmo e o Budismo coexistem no Japão, essas bipolaridades, como uma síntese entre Oriente e Ocidente, também se manifestam nas obras de Mariko Mori” (Kunsthaus Bregenz, galeria austríaca)
Na sequência sua preocupação teórica abraça o conceito budista de conexão entre os elementos do universo, trabalhando o contraste entre a investigação lógica, típica do cenário japonês atual, com a espiritualidade tão esquecida em nossos tempos – ou, nas palavras de Gwen Kuo “a justaposição de modernidade tecnológica com mitologia tradicional”. Essa ideia permeou obras como Burning Desire (1996-98), Dream Temple (1997) e Kumano (1998). Dream Temple, para comentar uma obra, é um templo multimidiático de aspecto high-tech, onde os visitantes aproveitam sensações audiovisuais muito elogiadas.
![Oneness no Brasil]()
“Enlightenment Capsule (1998) consiste em uma flor de lótus transparente feita de cabos de fibra ótica em uma cápsula de vidro. A cápsula é conectada a um sensor no teto do museu que utiliza o desvio cromático para separar os raios ultravioletas e infravermelhos dos raios da luz solar. A luz tem uma função de dualidade material e metafísica: forças visíveis e invisíveis trabalham em conjunto para alcançar uma combinação entre ciência e espírito” (descrição em museu sueco)
Infelizmente sua arte, muito representativa na década de 90, perdeu força nos anos 2000 e ela já é estudada em termos mais históricos que atuais. Isso se deu por uma série de razões. A China tomou do Japão o papel de referência de futuro para a modernidade asiática, e as pessoas perderam um pouco do interesse pelo high-tech japonês. Outro elemento que justifica sua queda é a obsolescência de temas acadêmicos que alavancavam a popularidade da obra dela, como o pós-humanismo e o pós-modernismo.
![Budismo mais Ciência]()
Sem contar que suas obras mais recentes tomaram proporções hollywodianas (como Tom Na H-iu), e a produção envolve engenheiros, arquitetos, cientistas (staff que inclui até mesmo um prêmio Nobel japonês) – tudo isso é muito caro, depende de patrocínio parrudo, coisa que não está sobrando no Japão. Por outro lado, esse gigantismo do aparato artístico de Mori, bem como o faro comercial de Murakami e Nara, foi o que lhes possibilitou renome internacional, defende Favell. Conforme a arte extrapolou a tela para abraçar formas arquitetônicas e digitais, envolvendo toda uma variedade de profissionais, é impossível para um artista se tornar proeminente sem apoio financeiro e organização logística (Kaikai Kiki funciona, literalmente, como uma empresa). Não a toa são os únicos três japoneses capazes de ainda competir com artistas chineses, americanos e ingleses.
ZERO ZERO GENERATION
“A experiência de amadurecer por volta de 1995 e depois foi desastrosa. Eles deixaram a escola ou universidade para um mundo economicamente abalado. As oportunidades secaram. Ninguém estava contratando. A ambição selvagem do Japão oitentista tinha desaparecido. Tóquio ainda era o destino porque a dor nas demais províncias era ainda maior, e a cultura da cidade grande forneceu o escape para a crise econômica. O melhor que eles podiam fazer era conseguir algum trabalho temporário em uma loja de conveniência e manter seus sonhos particulares presos em seus mundos internos. Os jovens japoneses que nunca conheceram os anos da bolha econômica como adultos são “A Geração Perdida” (…) Os baby boomers nasceram correndo, a Geração Perdida teve que aprender a engatinhar novamente” (Adrian Favell)
![Lost Generation]()
O Superflat, e os artistas a ele ligados de alguma maneira, como Nara e Mori, foram apropriados pelo governo e corporações como uma ferramenta extra do Soft Power japonês, um trunfo a mais em prol do Cool Japan. O movimento terminou por monopolizar a visão do mundo a respeito da arte japonesa, generalizando-a como um grande mangá. A conseqüência disso foi que o Superflat jogou sombra sobre todos os artistas e movimentos que não estavam atrelados ao seu discurso, marginalizando-os.
As principais vítimas desse processo foram os artistas nascidos a partir de 1975, a geração que atingiu a maturidade física, intelectual e artística em um Japão que, maduro demais, já ameaçava cair do pé. Diferente dos Baby Boomers (geração do Murakami), a Geração Perdida é mais aberta às diferentes possibilidades que a tecnologia pode proporcionar a serviço de sua estética. Se distanciando assim do propagado colapso da técnica do Superflat, eles se voltaram novamente ao treino e valorização da habilidade individual.
![nuclear hokusai]()
Testemunharam também a queda das teorias pós-modernas e pós-humanas, sendo assim pessoas voltadas a uma vida mais calma, porém concreta. Rejeitam os excessos do Milagre Japonês, responsável inclusive por mortes decorrentes do excesso de trabalho [karoshi] e pelas humilhações escolares [ijime]; bem como se afastam das teorias apocalípticas que propagam o fim do Japão, a morte da arte e da cultura. Não querem retornar ao sucesso do passado, pois ele continha falhas inerentes, nem querem dar de ombros, pois um futuro os aguarda. Sintonizados com os novos tempos, são artistas que querem construir algo novo nos escombros daquilo que ficou para trás. Com tal missão, usam e abusam de materiais e ideias ligadas ao conceito de sustentabilidade. Após o desespero do “No Future” propagado por vozes como Superflat e Aum Shinrikyo, eles querem plantar árvores no hambúrguer do Murakami e lutar para viver suas vidas no “Post-No Future”.
THE ECHO e ‘THE ECHO – EMBORA EU AINDA ESTEJA VIVO’
“As pessoas acham que o Japão só produz anime, videogames e arte grotesca e erótica. (Michiko Ogura, um dos organizadores de The Echo – Embora eu ainda esteja vivo)
Um grupo de artistas se insurgiu contra o sistema de artes do Japão em termos bem distintos da revolta Murakamiana. Eles estavam exaustos de tudo. Da falta de incentivo dado à arte contemporânea; da predominância do discurso e da estética do Superflat; dos museus e galerias que só reuniam artistas que confirmavam a teoria de algum curador consagrado e não necessariamente exibiam a pluralidade da nova arte nipônica (ataque direto a gente como Matsui Midori e seu manifesto Micropop – sobre o qual os anglófonos podem ler mais clicando aqui).
![The Echo Yokohama]()
Este grupo organizou uma exposição em Yokohama chamada The Echo, um show inteiramente organizado por artistas e sem curadoria. Nomes como Satoru Aoyama, Kei Takemura, Satoshi Ohno, Daisuke Ohba, Taro Izumi, Koichi Enomoto, Hiraki Sawa e Ichiro Sobe tentaram assim gritar em nome de uma nova geração, que apresentam novidades em termos de conteúdo e estilo. A intenção era apresentar ao Japão uma nova visão de criação, fazendo uso de materiais sustentáveis e oficinas de trabalho intensivo. Foram, naturalmente, ignorados pela mídia e massacrados pelos intelectuais do meio.
“No Japão não há uma tradição de arte contemporânea, isso não faz parte do nosso mundo artístico. As grandes galerias só se interessam pela arte tradicional japonesa e o sistema lá também é diferente. Só os artistas consagrados conseguem exibir, pois as galerias têm que ser alugadas e funcionam como um showroom” (Takahiro Ueda)
![Sako Kojima]()
Medida semelhante foi tomada em Berlim com ‘The Echo – Embora eu ainda esteja vivo’. A proposta é a mesma: declarar a multiplicidade de visões, posições e estilos da arte japonesa e internacionalizá-la. Mentalidade esperada de uma geração globalizada (10 dos 17 artistas dessa mostra nasceram no Japão e moram na Alemanha). Como afirma Michiko Ogura, um dos organizadores: “Os artistas são jovens, originais, versáteis e da mesma geração. Queremos mostrar que temos orgulho de sermos japoneses, mas somos pessoas do mundo”.
Neo Tokyo Contemporaries e Síndrome de Galápagos
Alguns nomes envolvidos na exposição The Echo em Yokohama estão ligados a um dos novos movimentos denominado ‘Neo Tokyo Contemporaries’, dando apoio a inovação e artistas não comerciais. Tóquio tentou canalizar essa nova energia com a Tokyo Art Week em 2005. A ausência de estrangeiros na visitação levou os organizadores, em 2010, a realizar simpósios sobre a Síndrome de Galápagos que afeta o Japão, com foco maior no mundo da arte.
Sídrome de Galápagos faz referência ao conjunto de ilhas situadas no oceano Pacífico que reúnem uma fauna de quase 2000 espécies que evoluíram somente lá. É uma alusão também ao tablet nomeado Galapagos que a Sharp desenvolveu exclusivamente (ou ao menos visando prioritariamente) o mercado japonês. Acho que já deu para notar a acidez do termo.
![Galapagos]()
Se no mundo analógico dos bens de consumo os japoneses dominaram a Terra com suas exportações, o advento do mundo digital fez o Japão aninhar-se no próprio umbigo. O mercado dá exemplos nítidos disso. Waichi Sekiguchi, editor do Nihon Keizai Shimbun, comenta que a telefonia móvel japonesa era a melhor do mundo. Empresas japonesas foram as primeiras a introduzir internet, televisão e GPS nos aparelhos, mas se preocuparam em atender apenas as necessidades locais e se alienaram das demandas internacionais (enquanto a Apple entendeu que o celular para as pessoas era também um artigo de design, ostentação, diferenciação e pertencimento a um grupo). Hoje as corporações nipônicas detêm apenas 5% de participação de mercado global, sendo a maior parte disso dentro do próprio Japão. Os finlandeses (Nokia, Motorola) e os sul-coreanos (Samsung e LG) têm população nacional pequena, insuficiente, portanto se voltaram principalmente aos desejos dos grandes mercados e hoje dominam o setor.
![Sharp Galapagos]()
E eu relembro a cultura pop, já que a Hallyu sul-coreana está tomando o mercado que antes era do Japão, enquanto os nipônicos se agarram com todas as forças ao porto seguro do mercado interno – ainda rico e volumoso, mas cada dia mais inexpressivo no contexto globalizado.
O mesmo acontece quando as galerias não disponibilizam tradução do japonês em seus catálogos, atenção destinada aos visitantes internacionais que por ventura possam se interessar pela apresentação, ou quando alguns artistas se mostram desconectados das vanguardas do exterior. Como as espécies de Galápagos perdidas nas ilhas do Pacífico, segundo essa visão, os japoneses parecem bastante confortáveis em seu habitat natural, mas seriam capazes de sobreviver fora dele? Com alegria percebo que empresários, governantes e artistas já observaram essa realidade e aos poucos tomam medidas para contorná-la, e então, como defende Sekiguchi, escapar de Galápagos.
MAKOTO AIDA E Chim↑Pom
![Makoto Aida]()
“Muitas pessoas no Japão pensam que Makoto Aida é o artista mais importante de sua geração. Mesmo assim, ele foi mal interpretado ou ignorado na Europa e Estados Unidos. Murakami sempre reconheceu que ele e Aida compartilham ideias e sensibilidades semelhantes, mas Murakami tem sido muito mais eficaz em mascarar isso com uma superfície plana e atraente. Em um de suas melhores obras, de 1996, Aida pintou Mitsubishi Zeros circulando em ‘moebius loop’ sobre uma Nova Iorque em chamas. (…) era difícil isto cair bem no Museu de Arte Moderna de NY (…) Murakami, por outro lado, veio a Nova Iorque triunfante. A mensagem subjacente estava lá. Ele nomeou seu show com o nome da bomba que destruiu Hiroshima, mencionou nuvens de cogumelo atômico e Akira. Mas transformou cogumelos em desenhos animados e encheu o show com flores felizes.” (Adrian Favell)
Se Takashi Murakami é o nome basal da arte japonesa nos anos 2000, Makoto Aida cumpriu esse papel na década de 90. No Japão é até mais respeitado que Murakami, homem que não goza de muita simpatia pública em sua terra natal. Aida, não obstante, foi uma das principais vítimas do rolo compressor do Superflat, responsável por amassar tudo o que veio antes dele no hambúrguer do achatamento cultural. Aida foi obliterado pelo sucesso do Murakami. Muito por causa da semelhança em estética e argumento de ambos. Em Mokomoko (2008, por exemplo, Aida traz a tona novamente a ideia de um povo que ainda luta para sublimar o trauma nuclear.
![Perceberam a Hello Kitty no canto]()
“Eu queria que fosse uma fusão de três imagens: a fofura da cultura pop japonesa do pós-guerra, simbolizada por personagens como Hello Kitty; um pênis ereto; e a capacidade de destruição em massa da bomba atômica. Eu pensei que essa combinação iria simbolizar o infantilismo distorcido que caracteriza o Japão contemporâneo.” (Makoto Aida, sobre Mokomoko)
Agora que o discurso Superflat perdeu vigor e a poeira começou a cair, alguns curadores estão revisitando a história da arte para devolver ao Makoto o lugar que é dele por direito, finalmente reconhecendo sua importância para o período. Mais do que reescrever os livros de história, existe uma preocupação em apontar novos caminhos, e nessa observação descobriram uma prolífera ninhada de novos artistas diretamente ligados ao Makoto Aida. Entre eles, destaca-se o grupo Chim↑Pom.
![Makoto Aida2]()
Chim↑Pom, nome derivado de chimpo (uma forma de dizer pênis em japonês), é um grupo artístico sem treinamento formal em artes, composto por cinco homens e uma garota na faixa dos 20-30 anos de idade, que se comportam quase como uma banda de J-rock (Ellie, Ryuta Ushiro, Yasutaka Hayashi, Masataka Okada, Toshinori Mizuno e Motomu Inaoka). A tônica do grupo se dá em intervenções urbanas provocativas, irônicas e cômicas. Suas interferências são gravadas em vídeo enquanto fazem troça com o absurdo da vida contemporânea, principalmente a toquiota. Vale a pena descrever algumas das divertidas ações de guerrilha artística do grupo.
Em Super Rat (2005) os jovens caçaram alguns ratos ariscos e resistentes ao veneno desenvolvido pelos humanos que povoavam uma região central de Tóquio. Eles mataram as ratazanas, submeteram os corpos ao processo de taxidermia e os pintaram de Pikachu. O Pokémon é kawaii, mas ainda é um rato, alerta o Chim↑Pom. Estão ironizando as meninas que freqüentam o Center Gai vestidas de Pikachu, e por tabela toda a moda urbana japonesa. Você pode ver um pequeno vídeo sobre Super Rat clicando aqui.
![Pikachu girl]()
Black of Death (2007) tinha um alvo mais geral. Nesta intervenção os artistas saíram às ruas antes da coleta de lixo, com megafones para amplificar o som que os corvos (abundantes no Japão) usam para se reunir em bandos. Fizeram isso em locais como o Shibuya 109 (famoso local de compras), o Parlamento e a Torre de Tóquio. A ideia era fotografar uma revoada de corvos circulando logo acima de construções simbólicas do Japão. A mensagem? Excesso de riqueza também atrai corvos que chafurdam os lixos em busca dos restos. O vídeo pode ser visto clicando aqui.
Se esses dois exemplos parecem mais uma brincadeira adolescente, com Pika (2008) o Chim↑Pom revolveu a memória histórica dos habitantes de Hiroshima. Com um avião, eles picharam “ピカッ” no céu (Pika!, flash em japonês), em cima do Memorial da Paz de Hiroshima, uma das poucas construções que permaneceram de pé após a explosão da Little Boy. Fizeram isso sem permissão ou consentimento dos habitantes de Hiroshima que se revoltaram, sobretudo os hibakusha, aqueles que sobreviveram à bomba e classificaram a ação como desrespeitosa e insensível. Curiosamente, Hiroshima recebeu muito bem os fogos de artifício do chinês Cai Guo Qiang, cujo Black Fireworks (2008) simulou, ao lado do Memorial, primeiro um cogumelo atômico; Depois, ao se dissipar, deu a impressão da chuva negra, lembrando o pé d’água radiativo que caiu horas depois da explosão em 1945. Você pode assistir a impactante queima de fogos clicando aqui.
![pika]()
Após as catástrofes de Fukushima, o grupo se voltou para a problemática nuclear caseira, a discussão sobre a fonte energética do país e a vida daqueles diretamente afetados pela radiação em 2011: “Não há como nós continuarmos a viver como antes. Nós devemos trabalhar para fornecer oportunidades de reflexão sobre o que aconteceu”, afirmou Ellie. Criaram novas intervenções para falar do assunto, como Real Times, mas também ressignificaram obras antigas. Ao reeditar Super Rat em 2011, o Chim↑Pom fotografou os ratos em Shibuya. Ratos e humanos convivem em harmonia na cidade – ou tolerância, por falta de opção. Do mesmo modo que os cidadãos japoneses são obrigados a coexistir em casa com usinas nucleares mal administradas e com alimentos contaminados pela radiação.
O crítico Yoshitaka Mouri, em contato com as intervenções da cria do Makoto Aida, se questiona a respeito do papel da arte no mundo atual, quando os artistas mais parecem ídolos pop praticando um J-Jackass de vapor politizado e provocação vazia.
A AMEAÇA DO CONTINENTE: CHINA MANIA
O Japão entrou no século XX crente que seria o curador e porta voz da arte asiática ao mundo. Hoje percebe que a arte chinesa o deixou na sarjeta do mercado internacional. A China é atualmente o que o Japão foi nos anos 60, o mundo olha para lá com a curiosidade de conhecer uma nova alternativa de modernidade com tempero asiático. Se Neuromancer fosse escrito hoje, Gibson não situaria seu cyberpunk nas ruas marginais japonesas, mas sim nas vielas de Pequim ou Xangai. Os olhares que antes se deslocavam para a China com desdém ou mesmo nojo hoje já contêm traços de curiosidade e mesmo temor. Até onde o Dragão recém-desperto é capaz de chegar?
![East is red]()
Quando falamos em arte, os criativos chineses recebem muito mais financiamento público do que os japoneses, principalmente quando falamos de arte contemporânea. A favorável condição econômica do país permitiu o surgimento de empresários milionários que patrocinam artistas locais como legítimos mecenas, enquanto os ricos japoneses apertam os cintos para não perder ainda mais ienes para as nações emergentes da Ásia. A numerosa classe média chinesa (os novos ricos) e o recrudescimento do interesse ocidental pelo país criaram uma verdadeira bolha de especulação no mercado da arte chinês – e onde tem dinheiro, tem museu interessado. Claro, sem ignorar o período árduo e recente do Maoísmo e o tema do pós-comunismo que com freqüência alimentam a imaginação dos criadores chineses (ao contrário do pacificado Japão que se abriu à tolice pop em tempos de paz extrema). Tudo isso, é evidente, sustentado por uma tradição milenar herdada do Império Chinês que confere consistência artística às obras atuais. Não podemos esquecer também que o contrabando ilegal de obras chinesas que foram censuradas pelo Partido também dá mais dinâmica ao comércio de quadros.
Ufa! Motivos e tanto para o Japão temer a concorrência chinesa. Aliás, não há o que temer, já aconteceu, o Japão ficou para trás. A arte chinesa hoje é mais criativa, fresca e dinâmica que a nipônica. Em termos comerciais, as obras dos chineses movimentam quantias muito maiores de dinheiro comparadas aos japoneses; mesmo Murakami virou café pequeno.
![Coke Ai Weiwei]()
Numa divisão simplista, os chineses podem ser separados entre aqueles que são apoiados pelo governo, seja por fazerem arte despolitizada ou a favor do regime, e aqueles que usam a arte para atacar as lideranças políticas da China, principalmente em temas como a falta de liberdade de expressão e a tortura. Caio Guo Qiang (de Black Fireworks citado acima) é o principal nome do grupo apoiado por Pequim, ele não entende a arte como ferramenta política e sempre se cala quando questionado sobre temas espinhosos da realidade chinesa. Zou Cao, por outro lado, compra briga quando associa o Maoísmo ao leninismo em East is Red – quadro onde o rosto de Mao Tsé-Tung aparece como digitais sobre a bandeira da União Soviética.
O artista mais midiático da China é sem dúvidas Ai Weiwei. Crítico ferrenho do regime comunista, ele cumpre prisão domiciliar desde 2012 por suposta fraude fiscal (e também por isso tem muita visibilidade no ocidente, arrematando o 3º posto entre os mais influentes da arte, segundo a revista Art Review). No clipe Dumbass ele retrata ao som de heavy metal o período em que ficou encarcerado. Brincalhão, em 2012 entrou na onda viral de Gangnam Style e gravou sua versão: em certo ponto no passinho do cavalo ele não segura rédeas imaginárias, e sim algemas. Você pode ver o vídeo clicando aqui.
![Ai Weiwei]()
Remembering (2008) é sua obra mais visceral. Em exposição na Alemanha, Weiwei empilhou 9 mil mochilas escolares num paredão. Usando cores diferentes, a muralha virou um grande painel onde se podia ler em chinês “Ela viveu feliz neste mundo por sete anos”. Frase de uma mãe que perdeu a filha no terremoto de Sichuan, responsável por matar mais de 80 mil pessoas. Weiwei avança contra os oficiais corruptos do Partido que desviaram dinheiro das obras e construíram escolas com fundações fracas, incapazes de suportam o abalo sísmico (diferente do Japão, onde as escolas eram os prédios mais seguros para se abrigar durante o terremoto/tsunami de 2011). A pilha de mochilas é uma homenagem aos milhares de estudantes soterrados nas escolas, e uma lembrança macabra das cenas do terremoto, onde mochilas se misturaram aos escombros e corpos enquanto os bombeiros lutavam para resgatar os sobreviventes.
O Japão deixou de ser interessante quando se tornou menos Cool e deixou de movimentar dinheiro no mercado da arte. Favell conclui que isso é uma perda lamentável, pois o mundo desenvolvido tem mais a aprender com um país que vive uma realidade mais próxima do decadente “welfare state’ europeu do que com a locomotiva mandarim.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Cool Japan foi soterrado pelo terremoto e contaminado pela radiação de Fukushima. Como conseqüência o Superflat foi afogado pelas águas do tsunami e virou história, não há mais espaço para suas ideias e estéticas. O projeto de se autodenominar ‘legal’ do governo japonês está fracassando como o Cool Britannia, que já virou motivo de piada na Inglaterra. A visão do Japão perante o mundo se alterou profundamente em 11 de Março de 2011. O impacto do terremoto, tsunami e acidente nuclear fez o mundo olhar com mais atenção para um país que patina na deflação há quase duas décadas e não é mais visto como vanguarda do mundo tecnológico, da modernidade ou do “Século Asiático”, como alguns definem o atual.
![Fukushima]()
O mundo descobriu que o Japão está com a economia e com as lideranças governamentais estagnadas no paroquialismo político, que a população envelhece rapidamente e não se renova, que os índices de suicídio são alarmantes, que a pressão escolar ainda é insustentável, e que o país como um todo está sendo derrotado, em vários setores, pelas sociedades chinesa e coreana. O interesse pelo Japão perdeu força, e o Cool Japan dá pinta de que será esquecido e jogado na lixeira junto com a Década Perdida que o pariu.
O Japão encontra dificuldades de transformar sua cultura pop em Soft Power e, mais ainda, numa política industrial capaz de substituir a manufatura de bens de consumo que serviu de locomotiva no pós-guerra. O atual governo do Shinzo Abe já percebeu isso e está fazendo esforços pela revitalização da manufatura japonesa. Novamente reconhecer que a vantagem competitiva do Japão é a excelência técnica (atenção aos detalhes). Alguns destes projetos você pode conhecer no site do governo “Made in New Japan”.
“Hoje, tenho o prazer de fazer um anúncio: As pessoas que sofreram tremendamente não perderam a esperança. Em Watari, os produtores de morango se recuperaram. Eu comi o produto deles, aqueles morangos grandes e vermelhos. Eles estavam deliciosos. Na verdade, até mais saborosos, já que a fruta agora cresce com uma nova tecnologia de controle de temperatura, uma tecnologia de ponta. Este é o novo Japão: O resultado da determinação do povo somado ao conhecimento avançado. Um país que enfrentou um desafio inimaginável e renasceu. A nação, uma vez auxiliada por sua boa vontade, está agora à beira de um novo futuro” (Shinzo Abe, Primeiro Ministro do Japão)
![Honda]()
É verdade que mangás são lidos no mundo inteiro e eventos otaku acontecem por aí, mas o país está se mostrando incapaz de rentabilizar seriamente isso (dá lucro, mas não substitui nem serve como complemento). A estética japonesa se desvinculou do país. O clichê da dialética tradição-modernidade já não seduz como antes. O mundo se cansou de olhos grandes, uniformes de colegial, meninas ingênuas e tons pastel. Não há mais espaço para a Akihabarização das galerias de Arte.
Tóquio novamente está saindo da rota global de circulação da arte. Porém, os artistas (não necessariamente apenas os jovens) estão percebendo seu papel na criação de novas diretrizes que norteiem o futuro do Japão pós-crise e pós-desastre, o tal “Post-no future”. Este é o trabalho de gente como Tabaimo, Kumi Machida e de curadores como David Elliott (e seu projeto Bye Bye Kitty!!!). Alguns artistas estão abandonando Tóquio e as instituições consagradas da produção artística para se instalar em escolas abandonadas do interior. Outros estão visitando as zonas afetadas pela radiação para se inspirar e inspirar as pessoas que ainda sofrem com o desastre. Enfim, muita gente no mundo da arte, dos negócios e da política está lutando por um novo Japão. E esse novo Japão não se pretende um hambúrguer de pelúcia, sarin e menininhas prensados, como pregam os apocalípticos do Superflat e da seita Aum Shinrikyo, e sim um país mais plural, dinâmico, otimista e integrado com a comunidade internacional.
por Kauê Antonio Lee
(Se você suportou esse texto até o fim, é possível que se interesse também pelo
“Hallyu – A onda coreana do pop de Seul invade o mundo!“)
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Fontes:
Before and after Superflat – A short history of Japanese Contemporary Art 1990-2011 (Adrian Favell)
SUPERFLAT WORLDS: A Topography of Takashi Murakami and the Cultures of Superflat Art (K Sharp)
Os corpos do J-pop (Christine Greiner)
Taboos in Japanese postwar art: mutually assured decorum (Ashley Rawlings)
Entertainment Re-oriented: Atomic Pop Pt. II: Hello Kitty and the Rape of Nanking (Ben Hamamoto)
Superflat: A Reação do Pós-Modernismo Japonês ao “Boom” Otaku (Alexandre Soares)
After the Gold Rush: Japan’s new post-bubble art and why it matters (Adrian Favell)
Bye Bye Little Boy (Adrian Favell)
Bye Bye Kitty: The Dark Side of Art in Japan (Lucy Birmingham)
Cool is not enough (Christopher Graves)
Escape from Galapagos (Waichi Sekiguchi)
Cool Japan Strategy (Modified version of the Interim Report submitted to the Cool Japan Advisory Council) (METI/2012)
Cool Japan Strategy: Singapore Program (METI)
Generation Superflat: Fashion Fusions and Disappearing Divisions in the 21st Century –(Cindy Lisica)
Micropop, and what it says about Japan (iMomus)
Ai Weiwei’s “Remembering” and the Politics of Dissent (Khan Academy)
Exposição em Berlim desmistifica a jovem arte contemporânea japonesa (Marco Sanchez)
Nihilist Moralists for a Traumatized Japan: Chim Pom’s “Real Times” (Alan Gleason)
Mariko Mori: Digital Deity of Technology and Spirituality (Gwen Anes Kuo)
Mariko Mori: Dream Temple (autor desconhecido)
http://chimpom.jp/index.html (site oficial do ChimPom)
http://english.kaikaikiki.co.jp/ (site oficial do Superflat)